sexta-feira, 17 de setembro de 2004

A história do Santalideus

Quando era pequena, o meu pai contava-me uma história que já o seu pai lhe contava:

"Em tempos que já lá vão, seguiam numa estrada dois cavaleiros. Ao chegarem à margem de um rio, encontraram um rapaz sentado junto a uma fogueira sobre a qual havia uma panela, cuja tampa o rapaz abria de vez em quando.
Os homens cumprimentaram o rapaz e um deles perguntou:
- Que estás a fazer, rapaz?
- Saiba Vossa Senhoria que como os que vêm e espero os que hão-de vir.
Os cavaleiros olharam um para o outro, confusos com aquela resposta.
- Que queres dizer com isso de comeres os que vêm e esperares os que hão-de vir?
Então o rapaz levantou a tampa da panela e mostrou o que lá havia dentro. Estava a cozer feijões, e à medida que a água fervia, apanhava os que subiam, comendo-os, esperando pelos que "haviam de vir".
"Rapaz esperto", pensaram os cavaleiros.
- Olha lá, sabes dizer-nos se podemos passar este rio a vau com os nossos cavalos?
- Saiba Vossa Senhoria que o gado do meu pai atravessa sempre a direito.
"Se o gado do pai dele atravessa a direito, então nós não devemos ter problemas..."
Lá se aventuraram no rio e... foram ao banho. Depois de muito lutar para tirar os cavalos da água, totalmente encharcados e exaustos, chegaram por fim ao pé do rapaz e perguntaram-lhe:
- Mas que raio de gado é o do teu pai?!
E o rapaz, imperturbável:
- Saiba Vossa Senhoria que o gado do meu pai são patos.
Foi aí que o cavaleiro teve uma ideia: "Espera aí que já vais ver como é..."
- Já que és tão esperto, não queres vir trabalhar para mim?
O rapaz concordou e foi com eles.
Depois de andar um tempo, aproximaram-se de um palácio, e o cavaleiro virou-se para o rapaz e disse-lhe:
- Se vais trabalhar para mim, ficas desde já avisado. Hoje vou ensinar-te umas coisas, e amanhã vou perguntar-te o que te disse hoje. Se não me souberes responder, serás castigado.
O rapaz concordou.
- Então começamos já. Este palácio que estás a ver, é a minha casa, o meu castelo. Nele mando eu, sou o Santalideus. Aquela senhora que está à porta à nossa espera, é a minha mulher, a Santalidade.
Entretanto chegaram e entraram. Logo veio um gato encostar-se às pernas do dono:
- Este é um papa-ratos.
Entraram numa sala e Santalideus apontou para o lume que ardia na lareira e disse:
- Aquilo que ali arde é a escarlência. E isto - apontou para um copo de água - é abundância.
Entrando no quarto, indicou a cama:
- Isto é uma estância e lá em cima - apontando para as vigas - estão as traquitanas.
Descalçou-se e mostrando os sapatos:
- Isto são ganha-fatos e estas são as tiras-viras - tirando as meias - Agora vai dormir e se amanhã não te lembrares de tudo o que te disse, vais-te ver comigo!
E a casa ficou em sossego.
De madrugada, com tudo ainda a dormir profundamente, o rapaz pegou no gato, atou-lhe um pedaço de estopa no rabo e pegou-lhe fogo, atirando o animal para o quarto do patrão e fechando a porta.
Disse então em voz alta:
- Alevanta-te Santalideus e mais a tua Santalidade. Calça as tuas tiras-viras e mais os teus ganha-fatos, q'aqui vai o papa-ratos c'a escarlência ao rabo. Se na lh'acodes c'abundância, leva-te o diabo a estância e as traquitanas, tudo por aí abaixo!"

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